sexta-feira, 4 de maio de 2012

O Vento Grita

O vento grita

Adora as noites frias e chuvosas, dificultava a procura, mas isso a animava ainda mais. Como num garimpo, procurava algo de valor, que aos olhos fosse estimado à primeira vista. Era assim que funcionava, primeira vista.
Cidade iluminada, ruas quase vazias e livres, silenciosas, só assim se ouvia a cidade e o vento.
O vento tinha voz e gritava lá fora, assustando as coisas que se desesperavam e caíam ao chão. E em meio a esse desespero, à raiva do vento, à fúria das árvores, algo a chamou atenção.
Um rapaz andava absorto em meio a tudo, ileso ao vento, mãos nos bolsos do casaco de chuva, andando calmamente pela calçada iluminada com uma luz quase laranja refletidas dos postes da rede elétrica instável, mas para ela era como holofotes refletindo aquele que seria o protagonista daquela noite fria e úmida.
Diminuiu a velocidade do carro, se aproximou do rapaz, baixou o vidro da janela do carro, os olhares se cruzaram e bastou-lhe um sorriso em sua boca vermelha e ele já estava sentado ao seu lado.
Não se falavam, palavras são mal interpretadas. Ele tremia agora, ela percebeu. Sua mão pôde sentir o jeans molhado por baixo do casaco quando o tocou. Ele pôde sentir sua mão quente e desejou que ela o tocasse por inteiro e o tirasse daquele frio que doía-lhe o corpo todo.
Pararam no primeiro motel que apareceu e o desejo dele foi realizado. Aquelas mãos quentes percorreram cada parte do teu corpo agora nu, esquentando-lhe por completo.
Das mãos à boca, da boca ao corpo, do corpo à intensidade, da intensidade ao suor, do suor à parede, da parede à cama. Troca de essências, troca de vida, troca de olhares, troca de ar, troca de sons.
Duas tempestades jorravam. Lá fora, a chuva lavava a alma suja da cidade. Ali dentro, o suor purificava a alma daqueles corpos, onde rios se formavam e sumiam por fendas e lençóis.
Passada as tempestades, restava a mansidão. Lá fora a rede elétrica, prejudicada pelo grito do vento, deixara a cidade em uma escuridão profunda. Ali dentro, brilhava uma pequena luz sobre a mesa. Mulher precavida, trouxera uma lanterna.
Estava sentada em uma cadeira, fumava um cigarro fino e longo, nua.
Tirou da bolsa um caderno, um lápis se pôs a desenhar. Lanterna, ora no corpo dele, ora no caderno, a cada minuto riscos ganhavam formas.
Cada detalhe de seus membros há pouco rijos e suados, eram agora traçados relaxados, entregue ao sono, confortavelmente aquecido e despreocupado.
A cada trago, um traço e um riso de canto, olhos ávidos, mão ágil e fumaça ao seu redor, esfera mágica de cheiro da Índia.
Terminou o desenho, guardou o caderno, a lanterna, se vestiu, deixou o lápis em um travesseiro, saiu do quarto, pagou a conta e foi para casa.
Chegando, foi direto ao quarto, pegou o caderno, retirou o desenho e o colou na parede. Foi difícil achar um lugar para esse. As paredes estavam repletas de corpos desenhados em folhas de papel, seios, coxas, pés, quadris, abdômens, músculos, rugas, pintas, cada um com ricos detalhes de seus corpos, atmosfera, travesseiros, lençóis, vasos de flor, cada um tinha algo que o tornava único, exceto por uma coisa, nenhum tinha rosto, nada de olhos, bocas, narizes, uma face lisa, em branco, apenas corpos que carregavam suas próprias marcas, cicatrizes, mas sem face, sem olhar de felicidade, tristeza, satisfação ou raiva. Corpos e mais corpos preenchiam as paredes de seu quarto. Corpos sem rostos, mas com alma e um a um nomeados: Lua Nova, Correnteza, Abismo, Bar Solitário, Passarela, Estação do metrô, Praça Pública, Silêncio ... O dessa noite: O Vento Grita.

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