terça-feira, 17 de agosto de 2010

As águias

Meu corpo todo tremia em suas mãos. Havia chegado no momento preciso, como se soubesse o que aconteceria. Amparava-me com força sem dizer uma palavra, não precisava, já não era novidade para ambos aquela cena, não que fosse frequente, mas já havia sido desenhado cada detalhe em muitas conversas anteriores.
Não derramava uma lágrima, era como se todo líquido do meu corpo tivesse evaporado. Estava seco, corpo e alma.
Deitou-me na cama e tentou aliviar as dores mais fáceis de serem cuidadas. Estava inerte, via a janela, a cortina se movendo e tentava não puxar da memória os últimos 35 minutos. Por um momento odiei-o, ele sabia.
Ainda não conseguia falar, mas me questionava como ele conseguira chegar naquele momento, o que o trazia aquela altura do dia. Anjos? Demônio? Minha alma inquieta que tanto gritara, clamara para que tudo acabasse? Maldita alma, por que não se calou?
Esboçou um sorriso, ameaçou umas palavras, mas apenas suspirou. Foi eu quem quebrou o silêncio pedindo-lhe água.
- Estou seca, por favor.
Atendeu prontamente e disse apenas.
- O temido extremo.
- Sim.
Já tínhamos compartilhado muitas coisas, risos e lágrimas, vidas e mortes, lençóis, suor, amor e ódio, flores, terra, mãos, palavras e silêncios e eu sabia o que significava aquele olhar calmo.
- Foram elas, disse-lhe.
- Eu sei, conte-me se puder.
Podia, mas temia. Temia vê-las naquele momento, já não poderia enfrentá-las com a mesma coragem de antes ou suportar a dor até o fim.
- Não vê as marcas? Vinham de todos os lados, aquelas asas enormes, as garras...
Enfim, lágrimas.
- Onde você estava?
- Lá fora, com as flores, estavam secas. De repente as sombras das asas no chão e quando tentei entrar, elas já tinham me atacado, entraram na casa. Por que está aqui? Devia tê-las deixado terminar o que vieram fazer.
- Sonhei com você, por isso vim.
Fácil deduzir um presságio, mas seus sonhos eram frequentes.
- O que sonhou?
- Que ia embora, estava de malas prontas e partiria para longe.
- Para onde?
- Não sei, não me falou.
- Premonição?
- Não sei. No sonho estava muito bonita e levava um grande casaco de inverno vermelho. Mas me conte mais.
- Não tenho o que contar além do que disse, o resto é dor.
- Vai passar, estarei aqui contigo.
“Vai passar”, não era isso o que ele queria falar, ele sabia o que se passava, sabia que as marcas que ajudara a cuidar eram mínimas diante das outras ora invisíveis.
- O que pensava quando elas chegaram?
- Olhava as flores secas e pensava que estava como elas, desejava ser regada como as flores naquele momento.
- E...?
- Depois o ataque. Não sei quantas eram, mas foi o suficiente para me deixarem assim. Nós já sabíamos um dia isso aconteceria.
- Eu sei, mas...
- Mas elas deveriam ter terminado o que vieram fazer, ao menos o medo cessaria.
- Como sabe o que elas queriam?
- Pergunta desnecessária. Mostrei-lhe o corpo.
- Desculpe.
Sentou-se mais perto e segurou minha mão, ficamos assim até o cair da noite.
- Não quero que elas voltem, não mais.
- Eu também não.
Neste momento, um perfume inundou a casa, nunca sentira esse perfume. Me fez levantar, mesmo que ainda a dor existia e sorrir com a tranquilidade que ele trazia. Andava pelo corredor até chegar à sala. Quadros, copos, cadeiras, livros, vasos, regador, tudo ao chão. Mas havia algo diferente, algo que nos chamou atenção mais do que toda a desordem da casa.
- O que é isso? Perguntou-me impressionado.
- Penas.
Por toda parte penas vermelhas voavam, de todos os tamanhos, todas com aquele perfume inebriante, adocicado, que me fazia rir e dançar. Dançava e rodava e as penas flutuavam como se ainda estivessem em asas. Eram as minhas asas que agora estavam livres.
- As águias não voltarão. Disse-lhe.
- Eu sei.
E sorriu.
Ana Flávia Oliveira

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