segunda-feira, 2 de abril de 2012

Reinvenção

- E quando a angústia antecede a palavra?
- Mas não é isso oque acontece com tudo? Primeiro se é, depois se define. Palavras são meros símbolos, representações daquilo que se é, se foi, se sente...
- E o futuro? Ele não é, não existe ainda, mas é palavreado e essa angústia é futura.
- Se está a pensar, parte de um dado presente, de possibilidades existentes e palavras serão apenas símbolos de um todo sentido.
- "Um todo sentindo", sem sentido...
- Sente sem sentido e se angustia?
- Sabes como sou.
- De você, sei quase nada...
- Não ria. Pressinto, prevejo.
- Quiromancia, astrologia, borras de café, profecia?
- Não brinca.
- Só me preocupa seus olhos, não é tristeza que vejo, é cansaço.
- É que tudo pesa, sufoca.
- Divida ou jogue tudo fora.
- Não posso recomeçar do zero.
- Se morre todos os dias, por que carregar fardos de vidas passadas?
- Por que então continuar de mãos dadas com as alegrias de vidas passadas?
- É diferente.
- Não é.
- Explique-se.
- Não sei, mas não é diferente. A vida não é a mesma toda vez que acordamos, eu sei, mas não se joga a vida passada fora, esquecendo-se de tudo, é parte da liberdade, da escolha, das responsabilidades, das consequências...
- Então escolha.
- Como se fosse fácil.
Era a primeira vez que o silêncio se rompera entre os dois, chovia e só agora se deram conta da música lá fora e ali dentro.
Continuaram deitados, cabeça com cabeça, não se olhavam, mas nesse instante se amaram intensamente.
- Sonhei com chuva essa noite.
- Quer me fazer acreditar em suas previsões?
- Não é isso. Sonhei com chuva e a casa em que eu estava era pequena, rosa, manchas de tempo nas paredes e tinha uma goteira em minha perna. Estava deitada no chão, um colchão velho, uma iluminação linda e música. Eu estava feliz.
- Estava sozinha?
- Fisicamente sim, mas havia uma presença de algo mágico naquele lugar. E agora essa angústia como se eu nunca mais fosse feliz como no sonho.
- Entendo e entendo o porque de ser sem sentido.
Se olharam e se amaram ainda mais.
- O quanto já discutimos sobre felicidade?
- Muitas e sei todos os nossos discursos.
- Te preocupas demais e pouco divide.
- Preciso primeiro entender, depois dividir.
- Divida e entenda. Quer espaço?
- Não, quero sua mão na minha.
já não havia luz, só a chuva, a música e suas mãos dadas.
A angústia...parte daquilo que chamamos liberdade, escolha...
Apesar do amor, a dor, de mãos dadas doía menos, mas ainda sufocava.
- Partir ou ficar?
- Escolhas...ainda há tempo para pensar, por que essa angústia? Estaremos juntos, lembra?
- Mas não é isso. Parte de mim não se encontra em lugar algum. É como se estivesse partido aos pedaços e cada parte em um lugar desconhecido, obscuro.
- E acha que todas essas mudanças, esses lugares diferentes trarão seus pedaços de volta?
- Não, é justamente o contrário, é isso que me desorienta ainda mais. Por isso a angústia. Uma vez me encontrei, mas me perdi, algo me acertou em cheio e as migalhas se espalharam. Talvez se tornaram poeira cósmica e nunca mais se reúnam.
- Se for isso, se reinvente. Tem estrutura para isso. Fica a procura do que se perdeu, não vai encontrar mais nada, nunca mais. Pode voltar ao passado quantas vezes quiser, ele será diferente, terá cores diferentes, pensamentos diferentes, até suas ações não serão mais as mesmas. Jamais se REENCONTRARÁ, mas pode se REINVENTAR com as peças que tem em mãos e são peças lindas, mesmo desconectadas.
A chuva trouxera o frio aquecendo seus corações.
A única luz que irradiava era dos seus olhos, ambos brilhavam intensos, profundos, como os sentimentos que a invadiam com uma força brutal, a força da criação, de um parto. Porém a leveza da primavera em seu sorriso.
- Partir ou ficar?
- Viver, eu escolho viver, cada dor, cor, sabor, amor, calor, ardor. Partir ou ficar pode esperar.
- Boa escolha.
E se amaram como nunca se amaram antes ou depois.

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